Texto: Claudia Acosta, Fabrice Duponchele, Gina Leite, Guido Miranda e Vanessa Eyng.
Uma viagem de quase 11 mil quilômetros. Entre ida e volta, a dourada, Brachyplatystoma rousseauxii, percorre a Bacia Amazônica em seu ciclo de vida, desde os Andes até o Oceano Atlântico. Como em qualquer circulação, o caminho precisa estar livre para que os movimentos ocorram.
Na bacia do rio Madeira, uma das principais rotas da migração da dourada, os peixes já não podem mover-se livremente. Em 2012 duas grandes hidrelétricas construídas no Brasil cortaram a conectividade do rio. O que já se sabia ocorreu: as hidrelétricas de Jirau e Santo Antônio impuseram uma barreira à migração de diversos peixes, entre eles a dourada.
As larvas da dourada, que nascem nos rios da Bolívia e Peru, deslocam-se rio abaixo até as barragens. Somente algumas sobrevivem às turbinas das represas e continuam sua viagem até a foz do Amazonas. Entretanto, ao nadar de volta, as barragens impedem que essas larvas retornem aos seus locais de reprodução. Essa é uma mudança imensa, que impacta a biodiversidade, a pesca e os modos de vida das pessoas dessa bacia.
E agora, quais caminhos esses peixes podem seguir? Quais estratégias podemos implementar para reduzir esses impactos? Convidamos você a assistir o vídeo Viagem sem retorno: a dourada amazônica e as barragens do Madeira, e compreender melhor sobre esse tema:
Buscando conhecer a história natural de um peixe
Os estudos para conhecer a migração da dourada datam dos anos 1980, utilizando distintas técnicas. Pesquisadores como Michael Goulding e Ronaldo Barthem começaram a desenvolver a hipótese de como a migração de alguns bagres, entre eles a dourada, era muito longa, cruzando a Bacia Amazônica de um extremo ao outro. As rotas mais importantes para essa migração são o canal principal do rio Amazonas e do Madeira.
Uma técnica para conhecer sobre os peixes e seu comportamento é a análise de informação de registro pesqueiro. O monitoramento contínuo mostra tendências de movimentos dos peixes em distintos anos e em condições ambientais específicas. Os pescadores observam os peixes, e especialmente o deslocamento de cardumes, para definir suas estratégias de pesca. Envolver os pescadores em pesquisas participativas é muito importante para aumentar o conhecimento sobre o que ocorre em diferentes lugares da Amazônia.
Estudos genéticos (disponível em inglês) são uma nova estratégia para ampliar o conhecimento sobre comportamento reprodutivo de distintas populações de peixes da mesma espécie. Estudos que abarcam tanto larvas quanto adultos podem ajudar a identificar os lugares onde os peixes se reproduzem. Adicionalmente, o monitoramento com técnicas como o eDNA, possibilitam identificar a presença de DNA na água, uma técnica inovadora com grande potencial de geração de conhecimento.
A química também pode ajudar nessas pesquisas. Pequenos ossos nos ouvidos internos dos peixes, os otólitos, guardam registros que contam a história de alguns migradores. Os otólitos dos peixes crescem, e como nos anéis de crescimento das árvores, as linhas que se formam representam anos. Estes anéis registram elementos químicos dos locais por onde estiveram os peixes. Como as águas dos rios da Amazônia têm características diferentes, cruzando análises da água e dos otólitos, é possível descobrir onde estiveram os peixes em determinada idade. A história de seus caminhos está gravada em seus ouvidos!
O artigo Migrações transamazônicas e retorno a locais de nascimento dos grandes bagres (disponível em inglês) apresenta resultados de investigações com os otólitos de douradas na bacia do Madeira antes das hidrelétricas. Essa pesquisa demonstra que, antes das barragens, a maior parte das douradas voltavam para os locais onde nasceram para se reproduzir.
Novas análises utilizando a mesma metodologia foram realizadas com peixes capturados acima das hidrelétricas em 2015. Os resultados indicam que as douradas permaneceram no alto Madeira durante todo seu ciclo de vida – nenhuma esteve na zona de crescimento do estuário, e todas tinham um tamanho menor que as que faziam a migração normal antes das hidrelétricas. Além disso, parece que são poucas douradas que conseguem sobreviver com esse ciclo de vida reduzido, já que agora são mais escassas nas áreas acima das hidrelétricas (disponível em inglês).
As amostras de otólitos de peixes da foz do rio Amazonas nos dão um pouco de esperança – algumas das douradas dali nasceram na bacia do Madeira, acima das hidrelétricas. Isso significa que algumas larvas, em quantidades menores que antes, ainda conseguem atravessar as hidrelétricas e chegar até o Oceano Atlântico. Entretanto, a viagem é somente de ida: as hidrelétricas impedem que essas larvas, que se tornaram subadultos, regressem rio acima.
A força das estratégias participativas
Grandes obras de infraestrutura, como as hidrelétricas, impactam direta e imensamente os ecossistemas aquáticos. A experiência do Madeira não é isolada.
Existem planos de construção de hidrelétricas em distintos pontos da Bacia Amazônica. O artigo Fragmentação da Conectividade do Andes à Amazônia por Barragens de Hidrelétricas (disponível em inglês) revela que existem 302 barragens ou projetos de hidrelétricas na região, correspondendo a 142 barragens em operação ou em construção, e 160 em várias etapas de planificação.
Nesse cenário, o intercâmbio e a produção de conhecimento é vital em toda a Bacia Amazônica. Necessitamos de dados para manejo e planos bem elaborados em escala de bacia. Hoje temos vazios de informação sobre a pesca nessa escala. Os monitoramentos contínuos são poucos, e não nos trazem o cenário mais integrado. As estratégias de monitoramento participativo com pescadores, que vivem os impactos em suas rotinas e conhecem os peixes, são fundamentais.
Ictio, tanto em seu aplicativo para registro de pescas quanto em sua base integrada de dados, aponta como uma ferramenta poderosa para gerar informação em escala de Bacia Amazônica. Partindo da perspectiva da Ciência Cidadã, cria espaços participativos para a construção coletiva de conhecimento sobre pesca. Pescadores do Madeira, assim como de outros pontos da Bacia Amazônica, participam de discussões e usam o aplicativo desde 2018.
Conhecer para conservar e viver melhor
A história da dourada na bacia do rio Madeira nos mostra que para planificar qualquer obra de infraestrutura é necessário conhecer os padrões de migração dos peixes da área. Garantir que as douradas possam regressar a suas áreas de reprodução no alto Madeira na Bolívia e Peru é primordial para a sobrevivência da espécie. São necessárias medidas para otimizar as escadas de peixes na hidrelétrica de Santo Antônio, e construir uma estrutura similar em Jirau. Ambas devem ser monitoradas para compreender a sua real eficiência. Neste cenário, também é indispensável tomar medidas para proteger as douradas que estão presas na parte de cima das hidrelétricas, de modo que essas tenham chances de se adaptar e se reproduzir.
Pela magnitude de sua viagem, a dourada nos traz um enfoque integrado de bacia, para compreender cada vez mais o que se deve ter em conta no momento de se gerar informação crítica para avaliar impactos ambientais e medidas de mitigação dos projetos de infraestrutura que se apresentem na bacia do Madeira.