Embora a América Latina possua 31% das fontes de água doce do planeta, em 2050 será uma das regiões mais afetadas pela mudança climática, com mais de um bilhão de pessoas em cidades sem acesso a este recurso vital, segundo o Banco Mundial. A bacia amazônica representa cerca de 20% do abastecimento mundial de água doce, no entanto, em algumas áreas da bacia, a população não tem um abastecimento adequado e suficiente de água potável. Estes são apenas alguns exemplos que demonstram a importância deste recurso para a vida de todas as espécies, incluindo a humana. Os dados têm gerado preocupação sobre a disponibilidade futura da água, mas também servem como um chamamento (ou um convite) para conhecê-la (sua natureza, seus ciclos e dinâmicas ou sua relação com as florestas, os solos ou os peixes), para valorizá-la e protegê-la.
“O sangue da Terra”
Na América pré-colombiana, a água era considerada pelos povos indígenas como “o sangue da Terra”, uma divindade que era venerada já que concedia cura, e um elemento que determinava as formas como a agricultura, a pesca, o comércio ou o transporte através dos rios eram feitos. A água também foi o elemento que serviu de base para o ordenamento do território. Os Zenúes (Caribe Colombiano) ou os Kichwa (Amazônia Peruana), por exemplo, criaram sistemas de irrigação e hidráulicos com canais e drenagens que respeitavam e permitiam a dinâmica natural da água tanto em épocas de chuva quanto em épocas de seca. Mas esta forma de ordenamento mudou com a adoção de formas de uso e gestão da água, das florestas e da terra alheias à geografia, ao clima, à biodiversidade e, especialmente, à dinâmica natural da água em um território como a América Latina.
A água é um ser vivo e nós nos esquecemos disso. Também esquecemos a sacralidade que ela tinha para nossos antepassados. Agora vemos a água como apenas mais um recurso, cuja disponibilidade é ilimitada e infinita. A água é uma obviedade. Abrimos a torneira e ela sai para beber ou cozinhar, lavar a roupa, tomar banho ou regar os arbustos. Em outros casos, é suficiente tirá-la do rio (ou ir até o rio) para fazê-lo.
Ponto di ruptura
Os habitats de água doce (rios, lagos, lagoas, nascentes, riachos ou pântanos) são um micromundo com uma biodiversidade muito rica. Segundo a UICN, eles cobrem menos de 1% da superfície da Terra, mas são o lar de mais de 126 000 espécies conhecidas de animais e aproximadamente 2600 de plantas macrófitas (aquelas que vivem em solos inundados, rios ou lagos), isto significa que em uma área muito pequena (mínima) da Terra há uma grande riqueza e diversidade de espécies (10% das espécies conhecidas até agora). Entretanto, algumas práticas as colocam em risco (“as espécies de água doce estão ameaçadas de extinção, provavelmente mais do que as espécies marinhas e terrestres”, afirma a UICN), e com elas a disponibilidade de água para nosso consumo: poluição por jogar lixo, resíduos industriais ou águas residuais em cursos de água naturais, alto consumo de água associado ao crescimento populacional, aumento das atividades industriais, expansão de terras para agricultura e pecuária ou resíduos tanto em áreas rurais quanto urbanas, são algumas delas.
A isto se acrescenta a mudança climática, que é, sem dúvida, o ponto de ruptura neste chamado para mudar a maneira como nos relacionamos com a água. Em várias regiões do planeta está provado que as secas são cada vez mais severas devido à mudança climática, com a diminuição da quantidade e qualidade da água e recursos relacionados, como a pesca, um dos principais meios de subsistência de muitas comunidades que dependem dos recursos dos ecossistemas de água doce. A escassez de água, de acordo com o World Resources Institute, é uma realidade latente em cidades como São Paulo, Cidade do Cabo, Cidade do México, Londres e Santiago do Chile.
Rumo a um novo entendimento
Há vários aspectos que ajudam a compreender a importância da água doce e, portanto, de seu cuidado e conservação:
– Não tem substitutos, é essencial para a vida porque de todas as formas de água (marinha, glaciar, por exemplo) é a mais fácil para os seres vivos consumirem: animais, plantas e seres humanos.
– A ela estão associados diferentes tipos de ecossistemas, tais como rios, lagos, áreas úmidas, lagoas, nascentes ou riachos, entre outros, que fornecem inúmeros bens e serviços, como alimentos, plantas medicinais ou materiais de construção, indispensáveis para centenas de populações humanas no mundo.
– Também está associada às florestas, de fato, segundo a FAO, cerca de 75% da água doce consumida no mundo inteiro, incluindo as grandes cidades, vem de áreas florestais.
– É dinâmica, ela viaja entre diferentes paisagens ou ecossistemas que definem suas características. As lagoas ou lagos das regiões do hemisfério norte são muito diferentes daqueles das regiões tropicais do mundo; isto também implica diferenças nas espécies de animais e na vegetação e seus ciclos de vida.
– Completa um ciclo: é extraída dos rios, reservatórios, poços, nascentes para chegar a nossas casas através de redes de abastecimento. A água que usamos (com os resíduos de sabão ou óleos, por exemplo) retorna à natureza, mas não antes de passar por processos de purificação, embora em muitos países da América Latina uma grande parte das águas residuais não é tratada em absoluto.
– As fontes de água conectam paisagens, ecossistemas, biodiversidade e pessoas em níveis regionais, além das fronteiras políticas. Se esta conectividade se interrompe, ela desencadearia a deterioração e perda das riquezas naturais, como estamos experimentando atualmente.
Compreender a água doce como um recurso vital e insubstituível, e talvez reconcebê-la como um recurso sagrado, é o primeiro passo para começar a refletir sobre seu cuidado. Na frente dos desafios que se apresentam, é necessário entender que sua disponibilidade e qualidade dependem do uso que fazemos dela e das formas em que a aproveitamos. A água é uma prioridade que cada vez mais está sendo considerada no ordenamento territorial sob uma abordagem de gestão integrada na qual a sustentabilidade deste recurso é procurada (um tópico que será abordado em breve).
Escrito por Carolina Obregón Sánchez
Fontes consultadas:
- Silvia López Casas, Doutor em Biologia pela Universidad de Antioquia e pesquisador em ecologia de peixes e ecossistemas de água doce.
- Significados del agua para la comunidad indígena Fakcha Llakta, Canton Otavalo, Ecuador. Carmen Amelia Trujillo, José Alí Moncada, Jesús R. Aranguren y Kennedy R. Lomas. Ambiente & Sociedade, 2018.
- El País, América Latina: la región con más agua, la más castigada por la sed, Julio César Casma, 13 de mayo de 2015
- BBC World Service. ¿Cuán probable es que tu país sufra escasez de agua? Pablo Uchoa, 6 agosto de 2019.
- https://www.iucn.org