As áreas úmidas são áreas de terra inundadas. Em épocas de chuva, estas são geralmente muito abundantes em água, mas seu nível diminui quando chegam as épocas de seca. Foto: Walter Wust. Buritizal, lagos, poço, brejo, meandros, pântano, estuário ou turfeira são alguns dos nomes pelos quais normalmente conhecemos as áreas úmidas; aquelas áreas de terra inundadas com água e encontradas na floresta, no litoral ou nas grandes cidades, muitas delas à primeira vista. Sua importância é que elas são os ecossistemas mais produtivos do mundo porque são o habitat de muitas espécies de plantas, animais ou microrganismos que nutrem o solo para permitir, por exemplo, o cultivo de alimentos, a disponibilidade de água ou a conservação da biodiversidade. Cenas comuns em áreas úmidas são aquelas onde há abundantes aves e insetos voando sobre o corpo de água; na terra há sapos, tartarugas ou jacarés. Em outras, pode-se ver as canoas dos pescadores que param em certos pontos do curso de água para pescar; pode-se também ver os barcos que transportam pessoas, alimentos, materiais de construção ou eletrodomésticos. Outras são as grandes áreas onde o arroz é cultivado. Todas elas têm as áreas úmidas como um cenário comum.
O Brasil é reconhecido mundialmente por ser o país mais megadiverso do mundo e por suas reservas de água, incluindo numerosas áreas úmidas. Atualmente, o país possui 27 áreas úmidas de Importância Internacional ou Sítios Ramsar (áreas úmidas que devido às suas características ecológicas são de grande valor global); nove delas estão localizadas na bacia amazônica, que é a maior bacia de água doce e floresta tropical do mundo. A importância destas áreas úmidas para o país e a região amazônica é que elas estão ligadas entre si, contribuindo para a conservação da bacia e para a conectividade ecológica das áreas protegidas que as compõem.
Em 2018, as áreas úmidas do Rio Negro e do Rio Juruá foram declaradas como sítios Ramsar, os primeiros em escala regional, nos quais, como já existem algumas áreas protegidas, processos de conservação e governança estão em andamento há vários anos com o envolvimento de populações locais e governos municipais e estaduais, organizações da sociedade civil, ONGs e o governo federal. A designação como Sítios Ramsar em escala regional representa um desafio: consolidar um modelo de governança que integre a multiplicidade de atores presentes nessas regiões e que ofereça continuidade e fortaleça os processos já em andamento.
Sitios Ramsar para a conservação
Até 2017, o Brasil era um dos únicos países do mundo que reconhecia os sítios Ramsar somente se estes coincidissem com unidades de conservação. A razão: em um território tão grande (o Brasil é o quinto maior país do mundo) foi necessário otimizar os poucos recursos financeiros e técnicos e o número limitado de pessoas para a administração das unidades de conservação e sítios Ramsar ao mesmo tempo. Entretanto, levando em conta a importância do país como uma das maiores áreas de captação de água doce, de sua biodiversidade para manter o equilíbrio natural do planeta, e de ameaças crescentes como a degradação e fragmentação dos ecossistemas (devido à conversão das terras, desmatamento, corte ilegal de madeira, exploração excessiva de recursos), o país decidiu estender os sítios Ramsar também a áreas úmidas que estejam em outras áreas protegidas, tais como Terras Indígenas, áreas de preservação permanente (APP) nas margens dos rios, entre outras. O objetivo: assegurar a conectividade ecológica (especialmente dos ecossistemas de água doce) e a conservação do território em uma escala regional. Desde então, o país possui Sítios Ramsar, compostos de unidades de conservação e outras áreas protegidas de importância ecológica, incluindo os Rios Negro e Juruá. Deve-se notar que as unidades de conservação no Brasil estão divididas em duas categorias principais: as de proteção integral, que visam a conservação in situ da diversidade biológica a longo prazo e as de uso sustentável, que são áreas em que os recursos naturais são utilizados com sustentabilidade.
A designação de sítios Ramsar contribui para a consolidação de acordos de cooperação nacional ou internacional para alocar recursos financeiros ou técnicos para a gestão de sítios e para acelerar projetos de conservação.
Os desafios: governança e comunicação
“Desde que surgiu a ideia de declarar sítios Ramsar que não correspondem necessariamente a unidades de conservação, um dos maiores desafios tem sido construir um sistema único de gestão e governança sob esta designação Ramsar em regiões de tal magnitude, não somente por causa de sua extensão geográfica, mas também devido à multiplicidade de atores, interesses, necessidades de uso e conservação, e iniciativas de governança já existentes em cada uma das unidades de conservação”, afirma Carlos Durigan, Diretor da WCS Brasil. Este sistema único de gestão e governança deve ser representativo de todos os atores e suas necessidades e garantir a participação da grande maioria das pessoas, já que o objetivo é garantir não apenas a conservação ambiental, mas a qualidade de vida das populações locais.
Segundo Guillermo Estupiñán, especialista em recursos pesqueiros da WCS Brasil, “O Sítio Ramsar Rio Negro, por exemplo, é uma região de 12 milhões de hectares na qual moram mais de 2 milhões de pessoas, portanto, atingir um alto nível de representação dá origem a outro desafio, que é a comunicação”. O que é um sítio Ramsar, como administrar um sítio Ramsar, quais são as práticas de uso sustentável mais apropriadas para a conservação dos recursos naturais, o que é importante proteger estritamente e o que é possível explorar e como fazê-lo, ou como administrar uma grande região para garantir a conservação da biodiversidade, são algumas das questões que devem começar a ser comunicadas às comunidades locais (indígenas, afrodescendentes e ribeirinhas), tanto rurais quanto urbanas, a fim de consolidar o modelo de governança, o qual é o primeiro passo a ser dado para a administração desses sítios Ramsar.
Um aspecto a ser destacado neste processo é que ele não começou do zero. O fato de que os sistemas de gestão e governança e os planos de manejo já existem para muitas unidades de conservação tem sido uma oportunidade de disseminar tais experiências e saberes para outros territórios que não são áreas protegidas, mas que fazem parte de sítios Ramsar. A Rede Rio Negro e o Fórum do Território Médio Juruá são duas redes que já existiam antes da designação Ramsar, e agora servem como pontos focais entre os diferentes atores envolvidos na gestão do Rio Negro e Juruá (comunidades locais, governos, ONGs, associações produtivas, organizações da sociedade civil e a Convenção de Ramsar). Desde 2018, estas associações têm apoiado as primeiras ações de comunicação e articulação, apesar das limitações devidas à pandemia Covid-19 e das mudanças nas políticas ambientais do país.
Embora nesses dois anos, especialmente em 2020, houve progresso em ações específicas para envolver o maior número de pessoas e instituições na estruturação do sistema de governança dos sítios Ramsar, o desafio mais imediato é procurar fundos através dos governos ou da cooperação internacional para agilizar o processo. “Não existem precedentes no país sobre como consolidar um sistema único de governança para os sítios Ramsar, portanto, a principal preocupação é alcançar tal modelo de governança para Rio Negro e Juruá (e outros sítios Ramsar de tal magnitude) ”, explica Carlos Durigan. A prioridade, uma vez que seja possível voltar aos territórios (muitos dos quais são de difícil acesso), é realizar processos de participação presencial com as comunidades locais para identificar os atores e as propostas de gestão que podem compor o sistema de governança (este seria composto por um comitê diretivo e vários comitês responsáveis por questões específicas), e para avançar no projeto da rede de comunicação.
O fortalecimento da cadeia produtiva pesqueira, o desenho de metodologias e projetos que permitam a arrecadação de fundos, o fortalecimento do turismo comunitário ou o pagamento por serviços ambientais prestados pelas comunidades são algumas das ações que têm sido propostas até agora como parte dos planos de gestão do Rio Negro e Juruá para o futuro. Neste momento, a gestão de Juruá e Río Negro está em fase embrionária. Mas conseguir um único bloco de gestão para cada um será uma força importante porque, embora sejam regiões em bom estado de conservação, “é necessário criar um cenário no qual projetos de gestão sustentável de recursos possam ser realizados e promover uma nova cultura de desenvolvimento que considere a conservação como razão suficiente para não intervir nesses territórios com práticas que levem à sua deterioração. No Rio Negro e Juruá há muitas oportunidades nas experiências de governança já existentes e no capital social formado para a conservação”, afirma Carlos Durigan.
Um olhar às áreas úmidas
Rio Negro
A bacia do Rio Negro está localizada no Estado do Amazonas, no noroeste do Brasil, em uma das regiões mais preservadas da Amazônia brasileira. O Sítio Ramsar Rio Negro cobre uma área de 12 milhões de hectares (uma área semelhante à da Nicarágua) e é nesta categoria o maior do mundo. O sítio inclui mais de 20 áreas protegidas, muitas das quais são terras indígenas onde se encontram importantes sítios arqueológicos. Com uma grande riqueza natural e cultural, o Rio Negro também tem parte de seu território dentro da Reserva da Biosfera da Amazônia Central e é um Patrimônio Natural da UNESCO.
A importância biológica deste sítio Ramsar como área de alto endemismo é explicada pelos tipos de áreas úmidas que o compõem: as florestas inundadas por rios de águas pretas (igapós) e as campinas e campinaranas que são grandes extensões que aparentam savanas de areia branca, únicas no norte da Amazônia. Estas áreas úmidas são o habitat de muitas espécies de fauna e flora aquática (palmeiras e árvores tropicais adaptadas a longos períodos de inundação) que existem apenas ali e em nenhum outro lugar do planeta (são espécies endêmicas), e de uma diversidade de peixes que é considerada uma das maiores do mundo (aproximadamente 1100 espécies), muitos dos quais participam das grandes migrações ao longo da bacia amazônica. Entre esses peixes migratórios estão a piraíba, o maior bagre da América do Sul, e a dourada, que percorre mais de 11.600 quilômetros em seu ciclo reprodutivo. O Rio Negro é também o lar de espécies ameaçadas de extinção, como a ariranha (a maior do mundo com quase dois metros de comprimento), o sauim-de-coleira, o boto vermelho, o peixe-boi e o macaco-aranha, assim como de aves globalmente ameaçadas de extinção, como o formigueiro-liso e plantas como a castanha-do-Brasil.
Localmente, regionalmente e globalmente, graças às altas taxas de precipitação (chuvas) que ocorrem ali, o Rio Negro é uma das maiores áreas de captação de água doce; muitos povos indígenas que vivem na parte superior da bacia amazônica e pelo menos seis municípios do Brasil são abastecidos por suas águas. O rio também serve como a principal via de transporte e conexão entre as cidades e os municípios da região.
Deve-se notar que o Rio Negro é, em parte, uma região cuja riqueza natural se deve a práticas indígenas milenares (pelo menos dez mil anos atrás) que contribuíram para transformar solos pobres em nutrientes (essenciais para o desenvolvimento da vida vegetal) em solos férteis. Graças à “terra preta de índio”, a partir da transformação de restos cerâmicos e resíduos orgânicos que os índios depositaram em locais específicos para sua decomposição, surgiu uma diversidade de fauna e flora que hoje caracteriza o Brasil como o país mais biodiversificado do mundo.
Rio Juruá
A Bacia do Rio Juruá está localizada no estado do Amazonas, no sudoeste do Brasil. O sítio Ramsar cobre uma área de 2,1 milhões de hectares (uma área semelhante à de El Salvador) e é composto por três áreas protegidas e um território indígena. Assim como o Rio Negro, Juruá também está no território da Reserva da Biosfera da Amazônia Central. Suas áreas úmidas são florestas inundadas ou de várzea (típicas das planícies de inundação e ao longo dos rios de água branca), lagos que aparecem e desaparecem dependendo da estação das chuvas ou do verão, e rios de água branca abundantes.
Em nível biológico, o Juruá é um sítio essencial para a conservação de peixes (abriga 392 espécies de peixes de importância alimentar e comercial para as populações humanas) graças a suas áreas úmidas ricas em nutrientes, que fornecem alimento e servem como local de nidificação para os ovos ali depositados pelas fêmeas; assim como para a conservação de répteis e mamíferos vulneráveis à extinção como o tracajá, o cabeçudo ou o pitiú, o peixe-boi-da-Amazônia, o tatu-canastra e o uacari-branco. Juruá é também o lar de uma das mais ricas e diversificadas espécies de anfíbios, o tamanduá-bandeira, a anta e o queixada; e é o lar permanente de numerosas espécies de aves (as regiões de Mamirauá e Alto Juruá são Áreas Importantes para as Aves) e o lar transitório de aves migratórias.
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Segundo Alberto Chirif, o maior especialista em comunidades indígenas do Peru, a governança é definida como “as interações e acordos entre os governantes e os governados, para gerar oportunidades e resolver os problemas dos cidadãos, e para construir as instituições e normas necessárias para gerar essas mudanças”.
Escrito por Carolina Obregón Sánchez
Fontes consultadas:
- Carlos Durigan, Director WCS Brasil
- Guillermo Estupiñán, especialista de recursos pesqueros, WCS Brasil
- https://www.ramsar.org/es/humedal/brasil